Cicloviagem no Lagamar, entre a serra e o mar do Paraná

O pedal que atravessa trechos preservados de Mata Atlântica na Serra do Mar e inusitados recantos do litoral paranaense compensa algumas ladeiras inclementes com belas descidas como a da famosa Estrada da Graciosa.

Uma viagem de bicicleta entre a Serra do Mar e o Litoral Paranaense pode ser feita de inúmeras maneiras, conciliando trechos percorridos de trem ou de barco, optando-se pela facilidade de longos trechos planos à beira-mar ou pelo perrengue de estradas pedregosas, visitando cachoeiras ou cidades históricas.

Nesse caleidoscópico cardápio, nosso roteiro montado para os dias de folia carnavalesca desse ano teve como ponto de partida a cidade de Quatro Barras, a noroeste de Curitiba. A partir desta simpática cidadezinha, em poucas pedaladas já estamos numa variante da Estrada da Graciosa. Ao invés de atravessar o famoso Portal da Graciosa, começamos a viagem por este trecho alternativo. É o meio mais lógico para novamente evitar a BR, além de ser um caminho bastante tranquilo e representativo dos primeiros visuais de cair o queixo que nos aguardam na Serra.

Diversidade – Quando encerra o asfalto, o sopé da Serra do Mar vira sertão de pedras e paredões no rumo de Guaraqueçaba
Se você tentar amenizar um pouco as coisas para convencer um amigo ou namorada (como foi o nosso caso) a encarar a pedalada, fazendo propaganda da descida nesta primeira etapa, vai ter que se explicar no caminho. Antes de despencar Serra abaixo, esse ramal da Graciosa envereda-se por uma passagem estreita, quase trilha, ladeira acima, um tanto pedregosa. A recompensa é que a mata fechada é de beleza singular, o chão é um imenso tapete florido e tudo isso sem a presença de um carro sequer.

Logo chega-se à Graciosa tradicional, aquela dos trechos em paralelepípedo, dos sete recantos-paradouros (lugares de lazer que dispõem de quiosques para venda de produtos típicos, mirantes e churrasqueiras), do Rio Catira, da pamonha quentinha e da cachaça de banana.

Criatividade – Eis aí uma receita prática de sombreiro, perfeita para aplacar a fúria do sol
A estrada sinuosa é conhecida por conservar a construção em pedra de 1854, que servia como rota para os tropeiros em direção ao litoral do Estado, interligando Curitiba às cidades de Antonina e Morretes. Além disso, a Graciosa corta o trecho mais preservado de Mata Atlântica do Brasil, marcado pela mata tropical e pelos belos riachos que nascem na Serra do Mar. Por isso, em 1993, parte do trecho da Serra foi declarada pela UNESCO como Reserva da Biosfera da Mata Atlântica. Para guardar tal riqueza, a região exibe dois importantes parques estaduais: o Parque Estadual da Graciosa e o Parque Estadual Roberto Ribas.

Como ameaçava chuva e a noite se aproximava, optamos por não ceder aos encantos dos “paradouros” e tocamos em frente. Quando terminam as descidas e chega-se a São João da Graciosa, há duas opções: dobrar à direita, no rumo de Morretes, ou mergulhar no sertão do pé da serra, em direção à Guaraqueçaba. Nesta viagem, escolhemos a segunda. Já eram quase dez da noite quando chegamos num ponto ideal para o pernoite, o Rio do Nunes, que fica uns 12 km adiante da cidade de Antonina e tem vários campings. Neste dia, pedalamos um total de 65 km.

Preservação – A região guarda um dos maiores trechos contínuos de Mata Atlântica do País

O merecido descanso do dia seguinte resultou em bastante atraso na saída. Começamos a pedalar com sol a pino na estradinha de asfalto que precede o chão pedregoso que leva à Guaraqueçaba. Para amenizar a força do grande astro, vale a criatividade. Fernanda, uma das colegas de viagem, improvisou um eficiente sombreiro com folhas de palmeira, e protegeu-se com uma camiseta branca cobrindo os ombros, lembrando um hábito de freira, o que provocou risos na turma diante dessa insólita religiosa a vagar de bicicleta em pleno Carnaval.

Como o calor intenso não aliviava, tomamos uma sábia decisão. Paramos no primeiro boteco que surgiu na estrada de chão para esperar até que os raios solares se acalmassem. Além dos cachos de banana e garrafas de cachaça, aquele oásis tinha um laguinho de águas turvas. Perguntei se era um pesque-pague, ao que o dono me respondeu:
– Não é não, mas o pessoal vem, pesca e paga.

Dizem que os estranhos hábitos dos humanos modernos, que passam dias e dias apenas pressionando teclas, podem levar-nos a um estresse irreparável. Por isso, atividades manuais e que nos reconectam com o ambiente, como uma boa pescaria, são recomendadas para evitá-lo. Então, ali onde não é pesque-pague, mas pesca-se e paga-se, fui fazer um pouco de terapia.

História e Natureza – Em poucos dias é possível saborear um bocado de cenários pedalando entre os picos de Serra e o complexo de baías que formam a fronteira norte do litoral paranaense. Trem e barco complementam a mobilidade e trazem boa parte das surpresas do caminho

Vendo que meu desempenho não era dos melhores, o filho do dono arranjou-me um molinete, de modo que eu pudesse atingir as águas mais profundas do meio do laguinho e me ajudou a fisgar as quatro tilápias que assamos na casa do tio dele mais tarde. Chegamos pedindo apenas grelha e um cantinho pra fazer fogo, mas o homem, hospitaleiro como todo bom sertanejo, cedeu sua cozinha e o fogão à lenha. Como se não bastasse, preparou um farto cozido de palmito (de palmeira real, com manejo sustentável), colhido na hora.

Depois do banquete, voltamos à pista e o sol foi substituído por uma boa chuva de verão. Ainda assim, os trechos com muita pedra ladeira acima, somados ao calor extenuante que havíamos passado no início do dia, castigaram bastante. Anoiteceu na estrada deserta e o cansaço geral bateu até que uma luz adiante anunciou a proximidade do povoado de Tagaçaba, melhorando os ânimos durante a aproximação lenta até lá. Na chegada, a opção de uma pousadinha, descanso e um pouco de conforto, realmente trouxe de volta o bom humor de todo o grupo.

Até Guaraqueçaba ainda teríamos mais de 40 km. O chão não mudaria: terra com muitas pedras, alguns seixos bem incômodos que exigem esforço na subida e destreza na descida. Por respeito aos apelos femininos, resolvemos abortar este trecho. Rodamos o vilarejo à procura de fretar um barco, já que o Rio Tagaçaba é navegável e termina na Baía de Paranaguá. Isso nos permitiria desembarcar na Ilha de Superagüi, que faz parte do Parque Nacional do Superagüi, uma área de 45 mil hectares que tem como atração principal sua exótica fauna que inclui vários animais ameaçados de extinção, como o papagaio-da-cara-roxa e o mico-leão-da-cara-preta.Também marcam presença as aves marinhas, como o biguá, a fragata e a garça branca.

Esperamos o barco na mais completa alegria, fazendo churrasquinho à beira-rio, dando uns mergulhos, pendulando em corda amarrada numa árvore e saltando na água feito crianças.

Este trecho de barco é um ponto bem marcante da viagem. Do rio ao mar aberto, dos labirintos de mangues às revoadas de pássaros, tudo é cênico. Uma fiel amostra desta porção do litoral paranaense todo recortado em ilhas e baías. Logo que desembarcamos na Ilha, conferimos outro espetáculo comum na região: as tempestades de raios, que lembram queimas de fogos de artifício. Ficam por horas pipocando no horizonte; uma cena incomparável.

O povoado de Superagui é um reduto de sossego. Tem um ar de tempos remotos: nada de carros, nem de motos, umas poucas ruazinhas de areia, construções rústicas, um povo alheio à modernidade. A larga faixa de praia, com quase 40 quilômetros, nos convida a pedalar descompromissadamente de chinelos, desenhando círculos, elipses, espirais ou qualquer coisa na areia dura.

Lá pelas tantas, fomos conhecer dona Rosa, que nos daria pernoite, numa das cinco casas espalhadas, distantes uma das outras por quilômetros da praia. Ela mora sozinha, mas recebe frequentemente a visita de vários campistas que montam barracas no seu quintal. Ao lado da moradia, uma bomba manual é a única que faz minar água potável, mas um tanto salobra e ferrosa.

De olho no mar – Na face leste da Ilha de Superagüi, imensidão de areia em trecho deserto e ótimo para pedalar. Mas é preciso atenção às marés

No último dia, embarcamos bem cedo com destino a Paranaguá. Em frente à Ilha do Mel, ficamos à deriva. Um problema no sistema de refrigeração do motor do barco fez o assistente meter a mão na graxa. Como não houve solução, o jeito foi seguir adiante contornando a falha de maneira bem primitiva: o marujo ia enchendo baldes de água do mar e jogando na casa de máquinas, de onde uma mangueira sugava o líquido e refrigerava o motor. Um enjambro que deu certo, embora diminuísse pela metade a velocidade do barco.

Em Paranaguá, fretamos um caminhão para levar as magrelas e fomos de ônibus até Morretes, pois seria impossível pedalar e chegar a tempo de pegar o trem. Por azar, a Quarta-Feira de Cinzas fez jus ao nome. Da deslumbrante viagem de trem cortando a Serra do Mar, tivemos apenas a lembrança de passagens anteriores e de um kit de cartões-postais comprados a bordo para refrescar a memória. Engenhosa obra arquitetônica, a estrada de ferro foi construída em 1890 e é hoje uma das mais antigas ferrovias em funcionamento no País. Na época, era a única via de acesso ao litoral. Hoje, com seus 110 km e 13 túneis leva, diariamente, turistas do mundo todo num agradável passeio que dura cerca de três horas. Nós, porém, não víamos praticamente nada daquelas monumentais pontes de ferro e de outros detalhes da majestosa ferrovia.

Na estrada – Depois de Antonina, um trechinho leve de asfalto, apesar da inclemência do sol

Em Curitiba, enquanto nossas parceiras descansavam na rodoviária, encaramos uma última pedalada de 25 km para buscar os carros em Quatro Barras, fechando essa ciranda carnavalesca pela Serra e Litoral paranaenses. Esta viagem teve caráter informal, mas a Caminhos do Sertão realiza viagens programadas pela região incluindo traslados, hospedagem e alimentação. O roteiro-padrão parte da cidade de Curitiba e percorre as ilhas do Mel, Superagüi e Peças. De barco chega-se a Guaraqueçaba e por terra até Morretes, de onde toma-se o trem até Curitiba.Os roteiros são flexíveis e variados, podendo ser agendados.