Entre a caneca e o pedal: eis o Vale da Cerveja, novo roteiro de cicloturismo em SC

Texto: Felipe Mortara | Fotos: Fernando Angeoletto (Caminhos do Sertão Cicloturismo)
Publicado originalmente na revista Go Outside (edição de junho/2017) | Veja a matéria aqui.
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Poderia ser só mais uma subida daquele segundo dia de pedal nas montanhas dos arredores de Blumenau. Mas minha mente e foco ultrapassavam o nível normal de concentração. Não sei bem se pela inclinação aguda que não deixava parar de pedalar ou se pela respiração ofegante entrei num estado de transe. Sutil, mas ao mesmo tempo muito intenso. Quase uma embriaguez por esforço. O que, convenhamos, é um sentimento bastante apropriado e pertinente num lugar conhecido como Vale da Cerveja. No entanto, não havia uma única gota de álcool no meu sangue naquela manhã de outono, com o sol deixando o azul do céu vigoroso e o verde da mata atlântica ainda mais contrastante.

Distante 157 km de Florianópolis, Blumenau sedia desde 1984 a grande festa alemã do Brasil, e a segunda maior Oktoberfest do mundo, perdendo apenas para a original, em Munique. Contudo, foi apenas recentemente que a cidade recebeu o título de Capital Nacional da Cerveja. A área engloba também aos seus vizinhos no Vale do Rio Itajaí, onde famílias descendentes mantiveram vivos os costumes de seus antepassados. Uma espécie de Meca da cerveja artesanal no Brasil. Mas daí o leitor se pergunta: mas o que cerveja e pedal têm a ver? Ao mesmo tempo tudo e nada, depende do olhar.

Entre as dezenas de microcervejarias, 11 se uniram para criar o Vale da Cerveja, associação que procura fomentar o turismo da cevada na região. Em abril, a Caminhos do Sertão, operadora de cicloturismo baseada em Florianópolis desde 2004, elaborou o primeiro roteiro de bike que inclui alguns dos produtores em seu caminho. Ao longo de três dias percorre-se 116 quilômetros, a maior parte deles em estradas de terra que serpenteiam pelas serras entre os municípios de Ilhota, Gaspar, Pomerode e Blumenau, onde ocorrem os dois pernoites. O equilíbrio vem de uma boa dosagem entre trechos de planície às margens do Rio Itajaí-Açu e subidas avantajadas por entre pequenas propriedades rurais e alguns dos 570 quilômetros quadrados do Parque Nacional da Serra do Itajaí, maior área de mata atlântica contínua de Santa Catarina.

O percurso, inaugurado em abril, contempla ciclistas iniciantes e avançados. Um carro de apoio e uma van com oficina móvel, comida e bebida, atém de itens de primeiros socorros acompanham o grupo o tempo todo, assim como dois guias ciclistas, abrindo e fechando o pelotão de até 20 pessoas. Nas subidas mais íngremes e extensas os participantes têm sempre a opção de subir no veículo para se poupar, aproveitando apenas as descidas e o vento no rosto. E aí está a grande sacada do roteiro, oferecer aos iniciantes uma noção do cicloturismo e aos experientes, treinar em condições mais exigentes.

A programação contempla lanches bem servidos pelo caminho, sem deixar de lado, claro, visita e degustação em algumas das melhores cervejarias do vale. Contudo, ao contrário do que propõem alguns passeios ciclísticos em regiões vinícolas mundo afora, por aqui o álcool só é permitido quando o pedal do dia é encerrado. Definitivamente não é um roteiro de degustação de cerveja com a desculpa de pedalar para amenizar a culpa de beber. A ideia é deixar pra lá os problemas da rotina, brindar ao fim do dia com excelentes cervejas e celebrar os quilômetros acumulados.

DIA 1

Nada de moleza

O primeiro dia de pedal pelo Vale da Cerveja pode parecer moleza até a hora do almoço. Após um curto traslado de van da pousada em Blumenau ou direto desde Floripa (a operadora acerta os detalhes com cada cliente), a saída é do pequenino bairro Pedra de Amolar, na cidade de Ilhota. Seguido por um alongamento, uma cuidadosa explicação dos guias apresenta a região e tira dúvidas gerais. Rumo ao oeste, por 30 tranquilos quilômetros todos vão se familiarizando com mountain bikes modernas e bem revisadas. As estradas de terra em ótimo estado margeiam imensos arrozais e casas simples, mas muito bem cuidadas. Os cachorros olham as bicicletas com algum desdém. Passam pequenos bandos de canários-da-terra e quero-queros, além de duas corujas-buraqueiras que espreitam sobre as cercas.

WhatsApp Image 2017-06-22 at 13.33.51 (3)Depois de uma breve ascensão, parada para almoço num bambuzal à beira de um pequeno braço de rio. Uma farta mesa de frios e conservas da região. Basta sair dali para encarar o trecho mais duro do dia, uma ladeira contínua de quase 10 quilômetros, com duas quedas de nível, até atingirmos 280 metros de altitude. Ao longo de 1h15 de subida, alguns dos 12 participantes empurram suas bikes ou embarcam na van. Eu mentiria se dissesse que nos momentos mais agudos não deu vontade de descer da bike e empurrar. Mas com a marcha mais leve, a respiração ofegante e um bocado de persistência foi possível concluir os 620 metros de subida acumulada.

O prêmio foi a descida de cinco quilômetros espremidos em apenas 230 metros verticais bastante íngremes e emocionantes. Para baixo, todo santo ajuda. Assim, depois de 46 quilômetros, chegamos até o bairro de Belchior Alto, em Gaspar. Seguimos direto para a Das Bier, cervejaria que serve 12 rótulos produzidos na casa – destaque para a cerveja do tipo saison, de estilo belga. Dali, uma parada para banho na pousada e jantar na Villa Germânica, na zona do imenso pavilhão de exposições que sedia a Oktoberfest. Não deixe de conhecer a Bier Vila, o melhor bar de cerveja de Blumenau, com 22 cervejas artesanais de barril e outras 400 em garrafas. Uma perdição.

DIA 2

Sempre dá para piorar

WhatsApp Image 2017-06-22 at 13.33.52 (5)Não foi nada fácil levantar, e menos ainda, partir para um workshop sobre a produção da bebida símbolo do passeio. Ainda em Blumenau, uma aula de 1h30 na Escola Superior de Cerveja e Malte. A escola oferece também um curso técnico que forma mestres cervejeiros aptos a trabalhar nas mais de 430 cervejarias artesanais do país – nos Estados Unidos já são 4 mil – ou a abrir seus próprios empreendimentos. Com o conhecimento reforçado, a van nos levou a Pomerode.

A cidade mais germânica do Brasil é delicada, com muitas placas em alemão e ainda exibia decoração de Páscoa, com ovos coloridos pintados à mão decorando algumas árvores. Passamos diante da cervejaria Schornstein, mas apenas contemplamos as pessoas a beber do lado de fora. Foram 10 quilômetros de pedal até a parada para almoço, diante da inusitada casinha do senhor Arno Kretz, de 70 anos, que construiu 36 rodas d’água em meio à mata. Dali por diante, um ganho violento de altitude partindo de 130 até 300 metros em apenas 4 quilômetros. Uma suadeira em meio à mata densa que, por vezes, se abria.

Entre lindas casas construídas no tradicional estilo enxaimel e plantações de palmeira real, para extração de palmito, as bikes avançam. Depois de um longo trecho baixando, com duas surpresas – leia-se ladeiras acima – chegou a vez de descer por completo até os 50 metros de altitude ao nível do Rio Itajaí. Seguimos numa grande reta, ficamos tentados a entrar na Bierland, mas fomos até a Cervejaria Container, em Itoupava, agora sim com visita na fábrica e degustação. O estilão inglês com autênticos toques de rock’n roll na decoração – há uma guitarra do AC/DC e um disco do Led Zeppelin autografados nas paredes – quebra o estilão majoritariamente alemão do Vale das Cervejas. A cerveja Joke foi a melhor pilsen da viagem. Quem tiver pique ainda pode seguir – de van, é claro – até a Cerveja Blumenau, talvez a mais consolidada cervejaria da região e provar a premiada Capivara Little IPA direto da fonte. É tudo isso mesmo.

DIA 3

Mas já acabou?

WhatsApp Image 2017-06-22 at 13.33.52 (2)Bastam uns poucos quilômetros em cima da magrela para ter certeza de que este é o mais bonito dos três dias de pedal. Isso porque o dia começa no bairro de Nova Rússia, porta de entrada para o Parque Nacional da Serra do Itajaí. Depois de 10 quilômetros de descida margeando o Ribeirão Garcia, a umidade da mata atlântica deixa o vento no rosto ainda mais refrescante. Em alguns momentos de floresta mais fechada, uma garganta se forma, revelando imensos despenhadeiros. Numa certa curva me lembrei da Estrada da Morte, na Bolívia, estrada nos arredores de La Paz, por onde se desce de bike de 4.650 metros até 1.200 metros de altitude. Aqui também é preciso atenção, mas o prazer da descida é imbatível.

Entre pequenas pontes e as corredeiras cristalinas do Ribeirão Garcia, vamos entrando na cidade de Blumenau. A parada para lanche foi numa rua tranquila do bairro Progresso, onde o casal de aposentados Otília e Alécio Schimidt se surpreendeu com nossa presença na rua e nos permitiu usar o banheiro de sua casa. Aliviados e alimentados seguimos por mais sete quilômetros com bons trechos de ciclovia até o centro de Blumenau. Em pleno domingo, a Rua XV de Novembro estava fechada para carros, mas cheia de famílias andando de bike.

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