Tainha à unha e Bijajica: vida Caiçara na busca às Baleias (cicloturismo Rota da Baleia Franca 2009)

por Fernando Angeoletto

Viajar à beira-mar tem seus poréns. Flagrar revoadas de gaivotas, acompanhar os contornos de espumas que as marolas desenham na areia, zanzar livremente sem a maldita pressão de buzinas é o que sempre se espera, e o que realmente há de sobra. Porém, há as barras. Descontinuidades no caminho, encontros de rio e mar que impõem a pausa, ou uma travessia improvisada.

Já havia comentado o assunto no relato Mar, lagoas e o barqueiro Buiú, da viagem pelo mesmo roteiro que fizemos em 2007.  A Barra de Ibiraquera é incerta: rompe, à força de temporais mais impiedosos; rompe, à força das máquinas que escavam a areia, num ato pela renovação das águas da Lagoa. Aberta, a Barra é um canal de água salobra com pouco mais de 100 metros de largura, raso demais para um barco de porte médio, fundo demais pra evitar que a travessia carregando uma bicicleta nas costas não seja uma verdadeira encrenca molhada.
Então, a solução adotada agora foi a mesma de 2007: acomodar as bicis na simpática bateira azul-calcinha, manusear o bambu-propulsor, e fazer tantas viagens quanto fossem necessárias para cruzar as 17 bicicletas e seus respectivos 17 condutores.
Tarefa melindrosa, mas nem tão difícil assim. Difícil mesmo foi desencalhar o barco da travessia Ilha-Continente, contra lufadas do vento nordeste impiedoso, no último dia da jornada. Mas isso é assunto para mais além.

Procurando Baleias

Deixamos Itapirubá no início da tarde de sábado. Motivo aparente: ver baleias. Motivo real: tentar ver baleias, enquanto se pedala em grande estilo por caminhos litorâneos e cuidadosamente selecionados, de modo a priorizar a contemplação e o alto astral. Diz o Jonatha, nosso guia e navegador, que avistou um simpático cetáceo lá da praia da Ribanceira, no meio do burburinho de um campeonato de surf. Mas, estando por último, não teve tempo de avisar o grupo. Fora isso, nenhum relato de visualização das gigantes.
Porém, condizente com o verdadeiro espírito “tentaremos ver baleias” desta empreitada, entramos pela Praia do Ouvidor no domingo. Um caminho sem saída, não fosse a originalíssima travessia pelo Projeto Gaia Village, disponível para poucos. Quatro quilômetros de pura beleza, atravessando dunas, restinga, um rebanho de bubalinos e áreas de recuperação ambiental.

O trecho, todo ladrilhado, termina na sede do Gaia Village. Ali fomos recepcionados pelo Donizete, que gentilmente nos fez uma apresentação dos princípios e atividades cotidianas do Projeto. Reserva particular que abarca variados ecossistemas litorâneos, os 900 hectares são preservados e recriados conforme o anseio dos proprietários, baseados no legado de José Lutzenberger, um dos mais ilustres ambientalistas brasileiros (falecido em 2002).

Ciclista caiçara pega tainha à unha

Da sede do Gaia rumamos à outra Barra, desta vez no canto sul da Ferrugem. Água pelos joelhos, bike nas costas, uma a uma. Numa das travessias uma tainha roçou minha perna; um ímpeto primitivo baixou sobre mim. E então, já que o interesse pela fauna marinha era grande entre os pedalantes, peguei a tainha à unha, para descrédito geral. A brincadeira custou-me uma mergulhada da câmera fotográfica em água salobra, além dos apelidos de Caiçara, Pescador e assemelhados. Para os curiosos: a câmera voltou a funcionar (ao menos por enquanto). Para os preocupados: a pobre tainha foi devolvida ao mar.
Depois da breve passagem pelo centro de Garopaba, seguimos ao Siriú, alongando o caminho com o contorno da Lagoa do Macacu. É um trecho ainda mais tranqüilo que o usual, com visuais privilegiados que as “morrebinhas” curtas e inclinadas proporcionam. Chegando à Pousada do Taxo nossa trupe, não satisfeita em esperar o farto jantar que se anunciava, resolveu celebrar a vida aos petiscos de um “surraxquinho” de lingüiça. Ponto para o Davi, nosso colega chileno, que não só providenciou a matéria-prima como comandou a churrasqueira.

Curiosos (e saborosos) quitutes no Engenho

O Morro do Siriú marca o início do último dia, como o aclive mais forte de toda a viagem. Após vencê-lo, e admirar do alto a vasta planície costeira, rumamos ao interior, nosso Sertão. Parte dos costumes camponeses pudemos provar na calorosa recepção das irmãs Maura, Vilma e Inácia, que mantém um dos poucos engenhos artesanais de mandioca na região. Ambientada no galpão rústico, entre rodas de moagem, prensas e tachos, repletos de bijus quentinhos e fumegantes, a mesa posta era o verdadeiro amálgama das culturas indígena e açoriana.

Você conhece a bijajica? É a massa da mandioca, misturada à pedaços de amendoim e especiarias, e assada em vapor. Uma perdição. E o nego deitado? É um preparado à base de fubá, envolto em folha de bananeira e assado. Preciosa iguaria. Fora as bolachinhas, bolo de milho e tapiocas que as Irmãs serviram com abundância. O trabalho delas é reconhecido como um importante resgate cultural pela gastronomia, fato que chamou a atenção do Slow Food, movimento ao qual recentemente integraram-se.
Engana-se quem pensou que o Morro do Siriú fosse o maior desafio. Imprevistas, as lufadas de vento Nordeste complicaram o percurso de 8 km na Praia da Pinheira. O açoite das rajadas, evidente na areia fina que corria baixo feito névoa na praia, foi duro. Ao final, um embarque tão duro quanto, para atravessar a Baía Sul de volta à Ilha. Maré vazante, contraposta ao vento forte levantando ondas, e nosso valente barco abarrotado de bicicletas resolve encalhar na areia. Foram necessários muitos braços e disposição, além da inestimável contribuição de dois motoqueiros que passavam por ali, para mover o bólido.
Ao final da travessia encerramos a viagem – o tempo fechou bruscamente, sinal das tormentas que assolaram o Estado justo naquele dia. Das Baleias levamos as lembranças, e o porvir de um dia quando talvez elas resolvam vir ao nosso encontro. Do belíssimo Litoral sul, das experiências ambientais e culturais, de todos os seletos caminhos percorridos e das amizades conquistadas lapidamos jóias em nossas memórias, tesouros de viajantes em nossas vidas.